Taylor Kubota - Universidade de Stanford - 22/05/2020
Quiralidade da vida
Antes de haver animais, bactérias ou mesmo DNA na Terra, moléculas autorreplicantes estavam evoluindo lentamente da matéria simples rumo à vida.
Dois pesquisadores da Universidade de Stanford, nos EUA, levantaram agora a hipótese de que essa interação entre proto-organismos antigos e os raios cósmicos possa ser a responsável por uma preferência estrutural crucial, chamada quiralidade, nas moléculas biológicas. Se a ideia deles estiver correta, isso sugere que toda a vida em todo o Universo poderia compartilhar a mesma preferência quiral.
A quiralidade, também conhecida como lateralidade, refere-se à existência de versões espelhadas das moléculas. Assim como nossas mãos esquerda e direita, duas formas quirais de uma mesma molécula têm formas que são uma reflexo da outra, mas não se alinham se forem postas uma sobre a outra.
Em todas as principais biomoléculas - aminoácidos, DNA, RNA - a vida usa apenas uma forma de lateralidade molecular. Se a versão espelhada de uma molécula for substituída pela versão regular dentro de um sistema biológico, o sistema geralmente funcionará mal ou deixará de funcionar completamente. No caso do DNA, um único açúcar na posição incorreta atrapalharia a estrutura helicoidal estável da molécula.
Louis Pasteur descobriu essa homoquiralidade biológica em 1848. Desde então, os cientistas debatem se a lateralidade da vida seria obra do acaso ou de alguma influência determinística desconhecida. Pasteur levantou a hipótese de que, se a vida é assimétrica, isso pode ser devido a uma assimetria nas interações fundamentais da física que existe em todo o cosmos.
"Nós propomos que a lateralidade biológica que testemunhamos agora na Terra deve-se à evolução em meio à radiação magneticamente polarizada, onde uma pequena diferença na taxa de mutação pode ter promovido a evolução da vida baseada no DNA, em vez de em sua imagem espelhada," disse Noemie Globus, que propôs a nova interpretação com seu colega Roger Blandford.
Polarização magnética vinda do espaço
Os raios cósmicos - que a rigor são partículas e não raios - são uma forma abundante de radiação de alta energia que se origina de várias fontes em todo o Universo, incluindo estrelas e galáxias. Depois de atingir a atmosfera da Terra, os raios cósmicos acabam se degradando em partículas fundamentais, criando um chuveiro de partículas. No nível do solo, a maioria dos raios cósmicos existe apenas como partículas conhecidas como múons.
Os múons são partículas instáveis, que existem por meros 2 milionésimos de segundo. Mas, como eles viajam próximo da velocidade da luz, já foram detectados a mais de 700 metros abaixo da superfície da Terra. Eles também são polarizados magneticamente, o que significa que, em média, os múons compartilham a mesma orientação magnética. Quando os múons finalmente decaem, eles produzem elétrons com a mesma polarização magnética.
Os dois pesquisadores acreditam que essa capacidade de penetração dos múons permite que eles e seus elétrons-filhos possam afetar as moléculas quirais na Terra e em qualquer outro lugar do Universo.
"Somos irradiados o tempo todo por raios cósmicos," explicou Globus. "Seus efeitos são pequenos, mas constantes em todos os lugares do planeta onde a vida pode evoluir, e a polarização magnética dos múons e dos elétrons é sempre a mesma. E, mesmo em outros planetas, os raios cósmicos teriam os mesmos efeitos".
Teste da hipótese
A hipótese dos dois pesquisadores é que, no início da vida na Terra, essa radiação constante e consistente afetou a evolução das duas formas de vida espelhadas de maneiras diferentes, ajudando uma a prevalecer em relação à outra. Essas pequenas diferenças na taxa de mutação teriam sido mais significativas quando a vida estava começando e as moléculas envolvidas eram muito simples e mais frágeis. Nessas circunstâncias, a influência quiral dos raios cósmicos, pequena mas persistente, poderia ter produzido a lateralidade biológica única que vemos hoje.
Globus e Blandford sugerem experimentos que podem ajudar a provar ou refutar sua hipótese dos raios cósmicos. Por exemplo, eles gostariam de testar como as bactérias respondem à radiação com diferentes polarizações magnéticas. "Experimentos como esse nunca foram realizados e estou empolgada para ver o que elas nos ensinariam. Surpresas surgem inevitavelmente de trabalhos adicionais sobre tópicos interdisciplinares," afirmou Globus.
Os pesquisadores também esperam por amostras orgânicas eventualmente coletadas de cometas, asteroides ou de Marte para ver se elas também exibem um viés quiral.
"Essa ideia conecta a física fundamental e a origem da vida," disse Blandford. "Independentemente de estar ou não correta, fazer a ponte entre esses campos muito diferentes é emocionante e um experimento bem-sucedido deve ser interessante".