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Nanotecnologia

Dois princípios fundamentais da teoria quântica podem ocorrer simultaneamente

Com informações da Agência Fapesp - 13/03/2023

Não localidade e contextualidade podem ocorrer simultaneamente
Ilustração do conceito de entrelaçamento quântico - a "comunicação" entre as partículas é instantânea, acima da velocidade da luz.
[Imagem: Johan Jarnestad/RSAS]

Não localidade e contextualidade

A teoria quântica já é centenária, estando na base de aplicações onipresentes na vida cotidiana, como os lasers, os LEDs (sigla em inglês para diodo emissor de luz) e o GPS (sigla em inglês para sistema de posicionamento global).

Apesar disso, a compreensão dos fundamentos da teoria física quântica ainda não é inteiramente satisfatória. E alguns dos comportamentos que ela descreve são tão destoantes do chamado "senso comum", baseado nas vivências empíricas do dia a dia, que surpreendem não apenas os leigos, mas até mesmo os físicos e filósofos da ciência.

Uma das ideias desafiadoras posta em pauta pela física quântica é a da "não-localidade". Enquanto a física clássica só admite correlações locais, as partículas podem influenciar-se mutuamente qualquer que seja a distância entre elas, por meio de um fenômeno chamado entrelaçamento, ou emaranhamento. Esse princípio ficou mais conhecido ao ser criticado por Einstein, que não gostou da ideia e a chamou ceticamente de "ação fantasmagórica à distância".

Outra ideia desafiadora, que parece vir no sentido contrário, é a da "contextualidade". Trata-se da noção de que os resultados de uma medição realizada sobre um objeto quântico dependem do contexto em que ela é feita, algo conhecido em termos mais comuns como Efeito do Observador.

Não localidade e contextualidade podem ocorrer simultaneamente
Só recentemente a contextualidade quântica foi comprovada de maneira definitiva.
[Imagem: Pengfei Wang et al. - 10.1126/sciadv.abk1660]

Simultaneamente complicado

Nascidas com a teoria quântica, não-localidade e contextualidade seguiram caminhos independentes por várias décadas. Um estudo realizado com um caso particular em 2014 chegou a demonstrar, inclusive, que apenas um dos dois fenômenos poderia se manifestar em um sistema quântico. Esse resultado ficou conhecido como "monogamia". E seus autores conjecturaram que não-localidade e contextualidade poderiam ser diferentes faces de um mesmo comportamento geral, que só se manifestaria de uma ou outra maneira.

Mas uma equipe de pesquisadores brasileiros e chineses acaba de refutar essa proposta, comprovando que esses dois aspectos fundamentais, em que a física quântica mais difere da física clássica, podem ser observados ao mesmo tempo no mesmo sistema.

"Provamos que é, sim, possível observar concomitantemente ambos os fenômenos em sistemas quânticos. E a abordagem teórica, desenvolvida aqui no Brasil, foi comprovada por um experimento de óptica quântica realizado por nossos colaboradores chineses," contou o professor Rafael Rabelo, da Unicamp. "Assim, fica evidente que não-localidade e contextualidade não são manifestações complementares de um mesmo fenômeno."

Isso é importante do ponto de vista prático, uma vez que a não-localidade é um importante recurso para a criptografia quântica, por exemplo, enquanto a contextualidade é a base para um modelo específico de computação quântica. "A possibilidade de se ter ambas, ao mesmo tempo, em um mesmo sistema, pode abrir caminhos para o desenvolvimento de novos protocolos de processamento quântico de informação e de comunicação quântica," conjectura Rafael.

Não localidade e contextualidade podem ocorrer simultaneamente
Esta figura geométrica representa as relações de compatibilidade entre todas as medições de um experimento. Cada medição é representada por um vértice. E vértices conectados por uma aresta representam medições compatíveis. As duas medições do "Observador A" (vértices vermelhos) são compatíveis com todas as medições do "Observador B" (vértices azuis) - conjuntos de medidas que são compatíveis duas a duas são compatíveis em conjunto.
[Imagem: Rafael Rabelo/Unicamp]

A disputada história da física quântica

Alguns aspectos contraintuitivos da teoria quântica devem-se ao seu caráter probabilístico. Sendo um conjunto de regras para calcular as probabilidades dos possíveis resultados de medições realizadas sobre sistemas físicos, a teoria quântica, em geral, não é capaz de prever, no nível de uma única medição, qual resultado será obtido.

A ideia de não-localidade foi uma espécie de resposta à objeção feita por Albert Einstein (1879-1955) ao caráter probabilístico da física quântica. Em um artigo seminal, publicado em 1935, Einstein, Boris Podolsky (1896-1966) e Nathan Rosen (1909-1995) questionaram a completude da teoria quântica. E, para isso, conceberam um experimento mental que ficou conhecido como "Paradoxo EPR" (sendo essas letras as iniciais dos sobrenomes dos três cientistas).

A crítica de EPR sugeria que, para justificar certas correlações não clássicas, advindas do entrelaçamento quântico, seria necessário que sistemas distantes trocassem informação de forma instantânea, o que contraria a teoria especial da relatividade. E que esse tipo de paradoxo decorreria do caráter incompleto da teoria quântica, que poderia ser corrigida com a incorporação de variáveis ocultas locais - estas devolveriam à física quântica o caráter supostamente determinista da física clássica.

"Em 1964, John Stewart Bell (1928-1990) revisitou o trabalhou de Einstein, Podolski e Rosen e introduziu um formalismo elegante que englobava todas as teorias de variáveis ocultas locais, independentemente de propriedades particulares que cada uma poderia ter. Bell provou que nenhuma dessas teorias poderia reproduzir as correlações entre as medições realizadas em dois sistemas previstas pela física quântica. Esse resultado, que ficou conhecido como Teorema de Bell, é, na minha opinião, um dos mais importantes pilares da física quântica. A propriedade de tais correlações fortes, que não podem ser reproduzidas por nenhuma teoria local, é hoje conhecida como não-localidade de Bell. Em 2022, John Clauser, Alain Aspect e Anton Zeilinger foram contemplados com o Prêmio Nobel de Física pela observação experimental da não-localidade de Bell, dentre outras realizações," detalhou Rafael.

Outro importante resultado decorrente da discussão a respeito de variáveis ocultas foi apresentado em um artigo de Simon Kochen e Ernst Specker (1920-2011), publicado em 1967. Os autores demonstraram que, devido à estrutura e às propriedades matemáticas das medições quânticas, qualquer teoria de variáveis ocultas que reproduza as predições da física quântica deve necessariamente exibir um aspecto de contextualidade.

"Apesar da motivação comum, o estudo da não-localidade de Bell e da contextualidade de Kochen-Specker seguiu por caminhos independentes por bastante tempo. Apenas recentemente cresceu o interesse por saber se ambos os fenômenos poderiam se manifestar concomitantemente no mesmo sistema físico. Em um artigo publicado em 2014, Pawel Kurzynski, Adán Cabello e Dagomir Kaszlikowski disseram que não. Isso foi demonstrado a partir de um caso particular, mas de bastante interesse. Foi esse 'não' que conseguimos refutar agora com nosso estudo," afirmou Rafael.

Bibliografia:

Artigo: Synchronous Observation of Bell Nonlocality and State-Dependent Contextuality
Autores: Peng Xue, Lei Xiao, G. Ruffolo, A. Mazzari, T. Temistocles, M. Terra Cunha, R. Rabelo
Revista: Physical Review Letters
Vol.: 130, 040201
DOI: 10.1103/PhysRevLett.130.040201
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