Redação do Site Inovação Tecnológica - 17/02/2023
Duplamente neuromórfico
Com todos os mistérios que ainda rondam a capacidade inigualável de processamento do cérebro, uma coisa é certa: Ele depende inteiramente do oxigênio, não conseguindo funcionar por mais do que poucos instantes se o gás lhe faltar.
E podemos estar a um passo de elevar nossas computações eletrônicas a um novo nível não apenas imitando o cérebro - o que a computação neuromórfica vem fazendo há algum tempo - mas também usando um material que faz isso com base no mesmo elemento vital, o oxigênio.
Uma equipe de Cingapura, China e EUA descobriu que um nanomaterial chamado ferrita de bismuto, já pesquisado para aplicações de ponta em computação, apresenta um comportamento intrínseco de memória graças ao movimento de átomos de oxigênio em seu interior.
O comportamento intrínseco de memória significa que o material funciona como um memoristor, o componente fundamental que memoriza as correntes elétricas que passaram por ele anteriormente - ele muda sua resistência elétrica a cada corrente que passa por ele -, viabilizando uma computação similar à dos neurônios e sinapses em nosso cérebro.
"Há evidências inequívocas de que as lacunas de oxigênio são responsáveis por isso," disse o professor Evgeny Tsymbal, da Universidade de Nebraska-Lincoln.
E a equipe demonstrou agora como construir e controlar o oxigênio nas nanocamadas do material, abrindo o caminho para seu uso em eletrônicos de última geração.
Memória não volátil
Ao contrário da maioria das técnicas de leitura e escrita de dados digitais, que falam apenas o binário de 1s e 0s, as paredes da ferrita de bismuto podem falar em vários "dialetos eletrônicos", o que pode permitir armazenar ainda mais dados.
Assim como acontece nas sinapses no cérebro, a passagem de picos elétricos enviados pelas paredes pode depender de quais sinais já passaram antes, conferindo-lhes uma adaptabilidade e eficiência energética mais parecidas com a memória humana.
E, assim como os cérebros mantêm as memórias mesmo quando seus usuários dormem, o nanomaterial retém seus dados mesmo que sejam desligados - um precursor de computadores e outros eletrônicos que ligam novamente com a velocidade e a simplicidade de uma lâmpada.
O que a equipe descobriu é que o comportamento inusitado do material, o primeiro que se conhece a operar com base no oxigênio, deve-se a uma interação entre a ferroeletricidade e a eletroquímica. "Temos algum tipo de processo eletroquímico - ou seja, o movimento das lacunas de oxigênio - que basicamente controla o movimento dessas paredes de domínio," disse Tsymbal.
A ferrita de bismuto é um material ferroelétrico, o que significa que a polarização - ou separação - de suas cargas elétricas positivas e negativas pode ser invertida aplicando uma pequena tensão elétrica, escrevendo um 1 ou 0 no material, e fazendo isso de forma definitiva, com o dado não se perdendo depois que a tensão é desligada.
Vacâncias de oxigênio
A gravação e leitura do dado acontecem em uma região de material chamada domínio. Dois domínios de polaridades opostas se encontram para formar uma parede, que ocupa apenas uma fração do espaço dedicado aos próprios domínios. A espessura de poucos átomos dessas paredes e as propriedades incomuns que emergem dentro ou ao redor delas as colocaram como candidatas preferenciais na busca de novas maneiras de espremer cada vez mais funcionalidade e mais dados por área em dispositivos cada vez menores.
Contudo, até agora ninguém havia conseguido regular e controlar esse processo porque tudo acontece em escala atômica. Em última instância, a equipe descobriu que a aplicação de apenas 1,5 volt em um filme de ferrita de bismuto produz uma parede de domínio paralela à superfície do material - uma parede com uma resistência específica à eletricidade cujo valor pode ser lido como um dado, como nos demais memoristores. Quando a tensão é retirada, a parede e seu estado de dados permanecem intactos.
Mas havia mais: Quando a equipe foi aumentando gradativamente a tensão, a parede de domínio começou a migrar para baixo no material, um comportamento observado em outros ferroelétricos. Contudo, enquanto as paredes de domínio nesses outros materiais se propagam perpendicularmente à superfície, na ferrita de bismuto ela permanece paralela.
E, ao contrário de qualquer material desse tipo, a parede adota um ritmo glacial, migrando apenas uma camada atômica por vez. E a posição da camada, por sua vez, corresponde a mudanças em sua resistência elétrica, que cai em três etapas distintas - três estados de dados mais legíveis - que surgem entre a aplicação de 8 e 10 volts. Ou seja, a ferrita de bismuto não permitirá construir apenas bits (2 dados), mas também trits (3 dados), indo além da lógica binária.
E, conforme demonstrou a equipe, todo esse comportamento totalmente anômalo, mas tecnologicamente muito interessante, ocorre conforme átomos negativamente carregados de oxigênio deslocam-se pela camada - na verdade, o que está sendo explorado para gravar os dados não são exatamente os átomos de oxigênio, mas as lacunas que eles deixam, chamadas vacâncias de oxigênio - um efeito similar, baseado em vacâncias de nitrogênio, já está sendo usado como qubit para computadores quânticos e várias outras tecnologias de sensoriamento de alta precisão.