Arley Reis - 04/08/2009
Dois astrônomos brasileiros elaboraram um mapa de um eclipse estelar, envolvendo sistemas de estrelas binárias, com uma qualidade nunca obtida até hoje. A descoberta foi publicada no conceituado The Astrophysical Journal.
Usando técnicas indiretas de obtenção de imagens, o estudo traz respostas a questões que há décadas intrigavam os astrônomos sobre as chamadas estrelas variáveis cataclísmicas - sistemas binários onde existe transferência de matéria de um corpo celeste para o outro.
Estrelas binárias
Com dados coletados por um telescópio de cinco metros de diâmetro em Monte Palomar, na Califórnia (EUA), o estudo da permitiu a construção de mapas dos eclipses da DQ Herculis.
Nesse sistema binário, a estrela que doa matéria passa na frente da anã branca e do seu disco de gás uma vez a cada 4h38m. Graças aos eclipses, é possível medir a velocidade do movimento das estrelas, determinar suas massas e dimensões, entre outros parâmetros.
"O trabalho foi chamado de estado da arte para técnicas de mapeamento indireto pelo revisor dessa importante revista científica, e demonstra a qualidade da pesquisa em astrofísica realizada na UFSC", comemora o físico Roberto Saito, que divide a autoria do artigo com seu orientador no doutorado, o professor Raymundo Baptista, integrante do Grupo de Astrofísica, ligado ao Departamento de Física da Universidade Federal de Santa Catarina.
Leis de Newton e Kepler
"Os resultados permitem entender muitas coisas acerca da DQ Herculis e, ao mesmo tempo, nos livram de muitas explicações pouco convincentes e incompatíveis", complementa o professor Raymundo Baptista, um especialista em imageamento indireto para estrelas, líder de um grupo de pesquisa que coleciona vasta lista de resultados obtidos com essas técnicas.
O estudo das binárias próximas é importante pois a interação entre elas permite extrair uma grande quantidade de informações e aplicar as leis de Newton e de Kepler, para determinação das massas e raios das estrelas. Os resultados obtidos por Saito servem para testar modelos e teorias e auxiliam numa maior compreensão da física dos discos de acréscimo (que levam matéria para uma das estrelas no sistema binário), colaborando com investigações sobre como estes astros se comportam.
Eventos cataclísmicos
"Justificando a designação, as estrelas variáveis cataclísmicas são palco de eventos cataclísmicos, como explosões de Novas e Novas anãs", lembra o professor Raymundo Baptista, exemplificando a contribuição do estudo para a astronomia e o avanço do conhecimento sobre o Universo.
DQ Herculis é um corpo celeste que apresenta brilho peculiar. Além da variação causada pelo movimento das duas estrelas que a formam, com período 4h38m, existe uma outra variação de brilho, com período de 71 segundos. O trabalho da UFSC tornou possível a obtenção de mapas de eclipse ao longo dos períodos de pulsação, com precisão significativa, desvendando detalhes de seu comportamento.
Farol estelar
Em um sistema desse tipo, uma estrela tipo solar transfere matéria para uma estrela compacta do tipo anã branca (objeto cósmico remanescentes de estrelas mortas). A matéria afunila em direção à anã branca através de um disco de matéria (o chamado disco de acréscimo).
É então capturada pelas linhas de campo magnético, formando um "chuveiro de matéria", até chocar-se com os pólos magnéticos na superfície da anã branca (veja a imagem acima, com a concepção artística do evento). O choque desse material sobre os pólos magnéticos da anã branca cria duas grandes manchas brilhantes e causa um efeito de "farol" enquanto a estrela rotaciona.
Os mapas obtidos a partir do trabalho de Saito e Baptista mostram duas regiões de brilho. Uma mais interna, que gira no sentido anti-horário, coerente com os chuveiros de matéria previstos pelos modelos de acréscimo com campo magnético. Além disso, uma região que pulsa com o período de 71s, que pode ser facilmente interpretada como a iluminação do disco externo pelo "farol" que gira junto com a estrela central, levando à pulsação que há meio século intrigava os astrônomos.
"Apesar da pulsação de 71 segundos ser conhecida há 50 anos, havia uma dúvida se o que víamos era um farol com feixe único, girando com 71s, ou um farol com dois feixes opostos, girando com 142 segundos, pois o efeito é o mesmo: pulsos a cada 71 segundos. Nossos resultados mostram que existem mesmo dois feixes, mas girando com 71 segundos. Resolvemos uma dúvida de mais de 30 anos.", comemora o professor Raymundo Baptista.
Fonte das pulsações
Os mapas revelam também que a principal fonte da pulsação é a luz refletida na borda externa e espessa que existe na frente do disco de acréscimo (algo não considerado nos modelos anteriores). Segundo Baptista, ninguém havia imaginado (ou propôs em artigo) que essa região poderia ser uma fonte de pulsação do sistema. Até porque ninguém tinha visto que ela é espessa, o que só foi revelado com o mapeamento agora feito.
Outra questão que intrigava os astrônomos é que o período da pulsação de 71 segundos tem mudado ao longo dos anos (às vezes é um pouco menor). As explicações propostas até então requeriam frear ou acelerar o giro da anã branca com uma rapidez incrível, demandando uma quantidade de energia acima da esperada para esse objeto celeste. Os resultados da tese de Roberto Saito permitem entender essas mudanças de período de forma muito mais simples, sem necessidade de quantidades absurdas de energia.
"Não é a anã branca que freia ou acelera. É uma simples questão de brilho relativo. Quando a transferência de matéria é maior, a borda do disco fica mais espessa, e a pulsação produzida ali domina o brilho do objeto. O período do pulso é mais longo. Quando a transferência de matéria é menor, o disco fica mais fino, a borda diminui e a pulsação gerada ali quase desaparece. O período do pulso fica mais curto", explica o professor Raymundo Baptista.
São as mudanças na transferência de matéria entre as estrelas que modulam a pulsação observada, esclarecem os mapas produzidos pela tese da UFSC. "E estas mudanças ocorrem porque a estrela que doa matéria é uma estrela magnética como o sol, que "respira" inchando e encolhendo (uma mísera parte em 10.000) mais ou menos uma vez por década (no caso do sol o ciclo é de 11 anos). As mudanças de período observadas em HD Herculis também ocorrem em escala de décadas. Cheque mate!", comemora o pesquisador.