Redação do Site Inovação Tecnológica - 04/10/2022
Ordem causal indefinida
A ordem causal - alguns preferem "lei de causa e efeito" - é o conceito básico para compreendermos o mundo e é a base do próprio conceito de tempo.
Essa causalidade, o tempo inexoravelmente caminhando do passado para o futuro, algumas vezes até mesmo sem lugar para o presente, desempenha um papel crucial em nossa cognição, permitindo-nos determinar a causa dos eventos, fazer previsões científicas e escolher ações razoáveis para atingir objetivos.
Mas vá dando um zoom na matéria até chegar ao reino das partículas atômicas e subatômicas e você verá o conceito de causalidade evaporar-se no meio dos chamados fenômenos quânticos, que parecem independer do espaço e do tempo.
Se você acha que isso é por demais teórico, espere até ver o que Xinfang Nie e seus colegas da Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul da China fizeram com esses conceitos.
Nie construiu um refrigerador que resfria tirando proveito do que ele chama de "ordens causais indefinidas": Você bagunça a sequência de causa e efeito e usa isso para levar o calor para onde você quiser, e não apenas mais só do quente para o frio.
Testemunha causal
Na verdade a ideia é antiga, remontando ao conhecido "demônio de Maxwell", um experimento mental proposto em 1867 pelo físico escocês James Clerk Maxwell, que desafiou a segunda lei da termodinâmica imaginando uma criatura hipotética - o tal do "demônio" - que ordenaria as partículas de um gás, passando as frias para um lado e as quentes para o outro, criando assim uma diferença de temperatura que violaria as leis da termodinâmica.
Nos últimos anos, vários experimentos mostraram que isso de fato é possível, invertendo o sentido do fluxo de calor e abrindo caminho para geladeiras que não gastam energia e até para motores movidos a informação.
Para entender isso, é preciso lembrar que, assim como em tudo na mecânica quântica, um processo termodinâmico também pode ser considerado como uma ação probabilística, o que permite fazer uma "ordenação causal indefinida" nesses processos. De acordo com a segunda lei da termodinâmica, o calor só pode ser transferido espontaneamente de um corpo quente para um corpo frio. Não haverá transferência de calor entre dois corpos da mesma temperatura. No mundo clássico, esta é uma conclusão trivial.
Mas esses experimentos mais recentes mostraram que, ajustando os eventos termodinâmicos de maneira criteriosa é possível mexer com o fluxo temporal, criando a tal "ordem causal indefinida". Para isso, em lugar do demônio de Maxwell usa-se o que os físicos agora chamam de "testemunha causal", ou testemunha de causalidade que, em vez de ficar separando partículas frias e quentes, fica observando e lembrando - o nome completo desse "ser" é "testemunha de inseparabilidade causal". Como é possível formular eventos da mecânica quântica sem qualquer referência a um tempo global ou a uma estrutura causal, a testemunha causal observa cada evento e lhe responde "Sim" apenas se todas as operações forem realizadas em uma ordem causal definida, ou seja, desde que sejam utilizados apenas recursos causalmente identificáveis.
Mas aqui estamos interessados em forçar uma resposta "Não" da testemunha causal. De fato, o truque para fazer o refrigerador funcionar consiste em tirar proveito da indefinição de causalidade. E, neste caso, tirar proveito significa fazer os eventos se sucederem em uma ordem que seja usada para fazer com que o calor flua para o lado (quente ou frio) desejado - sem romper com as leis da termodinâmica.
Geladeira com qubits
A equipe primeiro demonstrou essa propriedade termodinâmica "mágica", de ordem causal indefinida, em um sistema quântico formado por 4 spins nucleares - que são essencialmente qubits. Eles usaram os núcleos de carbono dos quatro qubits como testemunha causal, um núcleo de flúor como material de trabalho na geladeira e dois outros núcleos de flúor como fontes de calor na mesma temperatura do material de trabalho.
Controlando o estado da testemunha causal, eles podem ajustar a ordem de contato térmico do material de trabalho e das duas outras fontes de calor. Quando a testemunha casual está em um estado definido (0 ou 1), o material de trabalho entra em contato com a fonte de calor 1 (evento A) e com a fonte de calor 2 (evento B) em uma ordem definida. Mas quando a testemunha causal fica em uma superposição quântica (0 e 1), o material de trabalho entra em contato com as fontes de calor em uma ordem causal indefinida, viabilizando o processo do refrigerador quântico.
A equipe então mediu a testemunha causal, fazendo-a colapsar da superposição e assumir um estado determinado. Inicialmente, o material de trabalho absorvia o calor da fonte de calor, realizando a função de um refrigerador. Depois da medição, o material de trabalho libera calor para a fonte de calor. Em outras palavras, embora a temperatura do material de trabalho fosse a mesma que a das duas fontes de calor, com a ordem causal indefinida de contato térmico ainda havia uma transferência de calor.
Geladeira quântica
Determinado o mecanismo, a equipe então construiu uma geladeira quântica de quatro tempos: (1) O material de trabalho entra em contato com duas fontes de calor em uma ordem causal indefinida, quando então a testemunha causal é medida. Se o resultado for |0>-|1>, o ciclo continua; caso contrário, o processo é repetido até se obter |0>-|1>; (2) O material de trabalho entra em contato classicamente com a fonte externa e libera calor; (3) O material de trabalho entra em contato classicamente com as duas fontes de calor e libera calor; (4) A testemunha causal e o material de trabalho são reinicializados.
Isto demonstra na prática uma transferência de calor não-clássica, abrindo caminho para futuros estudos dos refrigeradores quânticos e seu eventual uso em tecnologias quânticas.